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Compras públicas e Compliance em tempos de pandemia

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Author

Alexandre Dalmasso

Com o acelerado avanço da pandemia do coronavírus, diferentes entidades governamentais e instituições privadas iniciaram verdadeira corrida para adquirir medicamentos e equipamentos necessários ao enfrentamento da doença. A junção desses fatores gerou um cenário de escassez, qualificado pela impossibilidade de diferir a compra dos insumos necessários à preservação da vida.

A sócia Viviane Kunisawa escreveu sobre a competição internacional pelos equipamentos necessários ao enfrentamento do COVID-19, apontando formas de ordená-la. Neste artigo, discutiremos o tema sob o enfoque das regras de contratação aplicáveis aos entes públicos brasileiros e das melhoras práticas de compliance, que devem ser adotadas por empresas privadas interessadas em vender tais bens à Administração Pública.

A relevância dessas discussões não é hipotética. Há notícias de que, ao menos, cinco Governadores já estão sob investigação da Procuradoria-Geral da República, por irregularidades na compra de respiradores mecânicos¹. Denúncias de corrupção na aquisição de tais equipamentos já levaram ao afastamento de secretários e subsecretários de saúde de diversos entes, incluindo os Estados do Rio de Janeiro² e de Santa Catarina³.

Os problemas, nem sempre, estão associados a atos de improbidade administrativa.

Discrepâncias nos valores pagos, muitas vezes, decorrem de diferenças na tipologia dos ventiladores⁴, no processo de fabricação, na qualidade dos equipamentos, na logística da entrega e na escala da contratação. Segundo reportagem do Jornal Folha de São Paulo, os preços pagos por cada respirador “variam até 80% entre os estados. Enquanto o Pará pagou R$ 120 mil por unidade, Roraima investiu R$ 216 mil por equipamento”, por exemplo.

Outros distúrbios resultam da precipitação de gestores públicos, que, no justificável afã de suprir demandas urgentes, acabam não tomando todas as cautelas exigidas pela legislação.

O primeiro ponto a esclarecer diz respeito à necessidade de realização do procedimento licitatório. A redação originária do art. 4º, da Lei nº 13.979/2020, previa que: “Fica dispensada a licitação para aquisição de bens, serviços e insumos de saúde destinados ao enfrentamento” da pandemia. A Medida Provisória nº 926/2020 alterou a redação do dispositivo transcrito, passando a prever que a licitação “é dispensável”.

A Medida Provisória deixa evidente que o ato de dispensa precisa ser, justificadamente, formalizado pelo gestor responsável.

Embora a Administração Pública tenha sido exonerada de realizar estudos prévios exaustivos, a Lei obriga a elaboração de “termo de referência simplificado ou de projeto básico simplificado⁵”, contendo uma série discriminada de elementos mínimos⁶. Entre eles, exige-se a apresentação de estimativas de preços, para evitar danos ao erário, que podem ser obtidas pelos seguintes parâmetros: “a) Portal de Compras do Governo Federal; b) pesquisa publicada em mídia especializada; c) sítios eletrônicos especializados ou de domínio amplo; d) contratações similares de outros entes públicos; ou e) pesquisa realizada com os potenciais fornecedores”.

Reconhecendo a possibilidade de oscilações ocasionadas pela variação de preços, a Lei autoriza que os equipamentos necessários ao enfrentamento da pandemia sejam contratados “por valores superiores”, desde que se acoste substanciosa justificativa aos autos do processo administrativo referente à contratação direta⁷.

A Lei nº 13.979/2020, assim como sucessivas Medidas Provisórias, têm acrescido regras minudentes para regeras contratações públicas relacionadas ao combate do coronavírus enquanto durar a pandemia.

De modo geral, o legislador tem permitido que os gestores públicos desbordem dos rigores exigidos pela Lei nº 8.666. No entanto, o regime excepcional de contratação pública que vem sendo erigido não desobriga os gestores de agir em conformidade com os Princípios da Administração Pública, especialmente o da impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência, economicidade e motivação.

Para os gestores públicos, o resumo é o seguinte: todas as contratações devem ser justificadas, buscar impessoalmente as condições mais vantajosas ao Poder Público e receber ampla publicidade. Em relação à transparência, o legislador foi expresso e específico: “Todas as contratações ou aquisições realizadas com fulcro nesta Lei serão imediatamente disponibilizadas em sítio oficial específico na rede mundial de computadores (internet), contendo, no que couber, além das informações previstas no § 3º do art. 8º da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, o nome do contratado, o número de sua inscrição na Receita Federal do Brasil, o prazo contratual, o valor e o respectivo processo de contratação ou aquisição⁸”.

Os cuidados, de certo, não devem ser adotados apenas por gestores públicos. Para prevenir prejuízos reputacionais, além de sanções civis, administrativas e criminais, as empresas privadas precisam adotar providências regulatórias e de compliance específicas.

Em relação aos ventiladores mecânicos, por exemplo, as empresas interessadas em vendê-los para a Administração Pública precisam:

a. Estar registradas perante as autoridades sanitárias, possuindo Autorização de Funcionamento – AFE, Licença Sanitária (VISA local), Certificado de Boas Práticas de Fabricação emitido pela ANVISA para Equipamentos de Alto Risco (Classe III);

b. Estar devidamente certificadas pelo SBAC – Sistema Brasileiro de Avaliação de Conformidade;

c. Os respiradores devem ter sido produzidos em conformidade com a Resolução RDC 16/2013 da ANVISA, que estabelece requisitos aplicáveis ao projetista e ao fabricante real em seus respectivos sistemas de qualidade;

d. O produto deve atender os requisitos da Resolução RDC 185/2001 da ANVISA, que trata do Regulamento Técnico referente a produtos médicos;

e. Atenda aos requisitos da Portaria INMETRO 54/2016, que estabelece as regras para certificação.

f. Conformidade com a ISO 14971, que trata de Gerenciamento de Riscos.

g. Tabela comparativa contendo as semelhanças e diferenças das características e especificações técnicas entre as diversas formas de apresentação dos modelos de equipamentos, quando aplicável; Instrução de uso ou manual do usuário segundo itens 1 e 3 do anexo III.B da RDC nº 185/01

A questão da precificação de equipamentos médicos, no período e relacionados à pandemia, é também sensível na perspectiva das empresas privadas. Como destacado, inúmeras variáveis podem impactar o valor de uma mercadoria, sendo a lei da oferta e da procura irrevogável por atos voluntariosos – ainda que bem intencionados. Por outro lado, o Código de Defesa do Consumidor caracteriza como prática abusiva a elevação sem justa causa do preço de produtos ou serviços. Elevações desproporcionais de preço durante a pandemia, ainda em cenários de aumento da procura, podem ser caracterizadas como prática abusiva, atrair danos reputacionais e mesmo reprimendas jurídicas.

Nesse cenário excepcional, é recomendável que as empresas possuam uma política comercial, com normas claras e bem definidas, capazes de conciliar os seus interesses comerciais com o respeito à transparência, à livre concorrência e ao interesse público.

Idealmente, deveria a empresa interessada em contratar com o Poder Público revelar, pelo menos ao ente contratante, as listas de preços praticados no ano anterior, justificando eventuais incrementos com base nas flutuações cambiais e dinâmicas de mercado verificadas no período.

A política comercial determina o modus operandi da empresa, bem como os níveis de desconto, rebates, bonificações, as regras em caso de devolução, credenciamento de distribuidores e representantes, operações logísticas, estruturação territorial, atuação em licitações, prazos e forma de pagamento.

Tanto para os gestores públicos quanto para as empresas privadas, a transparência parece ser a melhor escolha. Como Louis Brandeis⁹ afirmou, “sunlight is said to be the best of disinfectants; electric light the most efficient policeman”.

¹ Notícia disponível em: https://www.revistaceara.com.br/pgr-investiga-pelo-menos-5-governadores-apos-denuncias-na-compra-de-respiradores/.

² Notícia disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/05/08/corrida-por-respiradores-alimenta-golpes-e-suspeitas-de-corrupcao-no-brasil.ghtml.

³ Notícia disponível em: https://www.otempo.com.br/brasil/covid-19-sc-perde-2-secretario-apos-apuracao-sobre-compra-de-respiradores-1.2335550.

⁴ Os respiradores são divididos basicamente em dois tipos: a. os respiradores utilizados à beira-leito, para uso contínuo, com maior capacidade técnica de recursos ventilatórios e os respiradores de transporte, que não possuem a mesma robustez e podem resultar em funcionamento inadequado, especialmente com pessoas obesas. Os primeiros são notadamente mais caros que os segundos.

⁵ Lei nº 13.979/2020, art. Art. 4º-E, com a redação dada pela MP nº 926/2020.

⁶ Lei nº 13.979/2020, art. Art. 4º-E, § 1º: “O termo de referência simplificado ou o projeto básico simplificado a que se refere o caput conterá: I – declaração do objeto; II – fundamentação simplificada da contratação; III – descrição resumida da solução apresentada; IV – requisitos da contratação; V – critérios de medição e pagamento; VI – estimativas dos preços obtidos por meio de, no mínimo, um dos seguintes parâmetros: a) Portal de Compras do Governo Federal; b) pesquisa publicada em mídia especializada; c) sítios eletrônicos especializados ou de domínio amplo; d) contratações similares de outros entes públicos; ou e) pesquisa realizada com os potenciais fornecedores; e VII – adequação orçamentária”.

⁷ Lei nº 13.979/2020, art. Art. 4º-E, § 3º: “Os preços obtidos a partir da estimativa de que trata o inciso VI do caput não impedem a contratação pelo Poder Público por valores superiores decorrentes de oscilações ocasionadas pela variação de preços, hipótese em que deverá haver justificativa nos autos”.

⁸ Lei nº 13.979/2020, art. Art. 4º-E, § 2º.

⁹ Associate Justice da Suprema Corte dos Estados Unidos, entre 1916 e 1939.